primeira tradução - crítica do cd Hortênsia du Samba - revista Les InRockuptibles, uma revista francesa de cultura bem legal


Revista les InRockuptibles – de 6 a 12 de abril 2011

Albums
Por Stéphane Deschamps

Boeuf de langues

O disco mais engraçado do momento? Hortênsia du Samba, projeto bilíngue entre o francês Tante Hortense e seus correspondentes brasileiros Revista do Samba.

Deslocado, Stéphane Massy já é. Pra começar, ele faz canção francesa em Marseille sob o nome de Tante Hortense (tia Hortênsia). Três albums discretos, minimalistas e seriamente perturbadores não lhe trouxeram nem glória nem fortuna. Nem mesmo o título Uma Piroca (no pulso), contudo um hit. Mas tudo poderá mudar. Pois Tante Hortense, que já sabíamos impregnado de música brasileira, terno como Caetano Veloso e tão malicioso quanto Tom Zé, lança sua primeira produção internacional: Hortênsia du Samba, um disco gravado no fim de 2009 em São Paulo com o trio local Revista do Samba.

2009, era o ano da França no Brasil. Tante Hortense aproveita a ocasião para montar um projeto. Ele já foi ao Brasil. Do grupo Revista do Samba, ele conhece um pouco a música, apurada, e também a cantora (além do mais atriz) Letícia, que ele descobriu nua numa peça de teatro que durava sete horas. “Me peguei em São Paulo com meus quatro músicos que não falam português. A gente tinha dez dias pra montar um show, e então três dias pra gravar um disco. Foi intenso, fatigante, de oito horas da manhã à meia-noite. Mas também leve, na energia, encontrando respostas sem ter tempo de fazer as perguntas. No início, eu queria fosse um disco de samba em francês, fosse uma fusão entre samba e rock. Eu não sabia bem, mas tinha a convicção de que alguma coisa era possível. No final das contas, conseguimos fazer esse negócio que leva o nome vagabundo e manjado : fusão”.

Geralmente associado à imagem de baixistas fretless com rabo de cavalo, o conceito de “fusão” é formalmente proibido. Escutando o álbum, é preferível falar de correspondência, realmente de ‘corres’ simplesmente. Pois há nesse disco lembranças de vivências linguísticas, de viagens escolares, de barreiras de línguas transpostas em um riso louco, leve e poliglota. A música é boa: harmonias vocais, jorros estivais de percussão, pitadas de violões acústicos docemente colocadas. Samba, ora. Mas o que é ainda melhor, pois de uma graça irresistível, é o bilinguismo textual.

A maior parte das letras francesas são interpretadas pelos brasileiros, e inversamente. “je comprends rien à cé qué jé dis, mais jé trouvé ça joli”, canta assim o percussionista Vítor com um sotaque de cortar o Pão de Açúcar com uma faca. Tante Hortense, que tem uma sequência nas idéias, relança sua Bite (sur le poignet). Em Português, fica “tenho uma piroca no pulso” e isso faz rir as crianças. No Bel Amant du Berry, Tante Hortense põe Letícia pra cantar a história de um sujeito de Loir-et-Cher. O Corcovado contempla a igreja de Noyers-sur-Cher, e é uma maravilha de exotismo insólito.

“O samba me agrada porque é uma música muito equilibrada, completa, sobre aspectos difíceis a conciliar: ritmo, harmonia e texto”, explica Tante Hortense, que teve o dom de adicionar a isso sua suprema pegada pessoal: o humor.
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